Entendimento1
O entendimento será conhecido a partir do momento em que conhecermos todas as maneiras de agir, ou todas as faculdades que nos servem para adquirir conhecimentos, porque a reunião de todas essas faculdades forma o entendimento.
Se, para descobrir a natureza do entendimento, acredita-se que é necessário e que basta remontar ao que chamamos tão impropriamente de faculdade de sentir, esse primeiro erro só poderia nos conduzir a outros erros. Se mal observado o princípio de nossas faculdades intelectuais, todas as consequências seriam falsas, e o sistema, obra da imaginação, não teria modelo na natureza.
Como é que a simples capacidade de sentir, uma propriedade toda passiva, daria razão do que há de ativo em nossas modificações? A passividade se modificaria em atividade? Transformar-se-ia em atividade?
As sensações podem ter, com as ideias, com os conhecimentos, uma relação de natureza: mas elas não têm nenhuma relação de natureza com as faculdades ou as potências do espírito; nós nos enganaríamos singularmente, se pensássemos que basta ter experimentado muitas sensações para dotar-se de uma grande inteligência.
Não é pelas sensações que os homens se diferenciam uns dos outros. A natureza deu a todos os mesmos sentidos: todos viram as diferentes estações do ano e as diferentes estações da vida; todos têm a experiência dos bens e dos males que nos vêm da natureza, dos que nos vêm de nossos semelhantes, e dos que nos vêm de nós mesmos. Todos os homens da mesma idade passaram, mais ou menos, pelas mesmas provas da vida: todos provaram, mais ou menos, as mesmas sensações; e, no entanto, que diferença entre a inteligência de um e de outro homem!
Tudo o que nós sabemos, nós o sentimos, sem dúvida; mas quanta coisa nós sentimos e que ignoramos! As sensações podem ser o primeiro princípio de nossos conhecimentos, mas elas não são os nossos conhecimentos, sobretudo não são todos os nossos conhecimentos: e, se for preciso lembrar experiências infelizes muito comuns, quem não viu desses infortunados que sentem, e nada mais fazem que sentir; que chegam a uma idade avançada sem jamais deixar transparecer uma centelha de razão? Não é preciso transportar-se às montanhas do Valais para encontrar criaturas de figura humana, que vivem numa estupidez absoluta e num embrutecimento bem animal.
Uma vez que a diferença dos espíritos não provém do mais ou do menos de sensações, não pode provir senão da atividade de uns e da inércia de outros, pois, no espírito humano, tudo pode resumir-se a três coisas: às sensações; ao trabalho do espírito sobre essas sensações; às ideias, ou conhecimentos, que resultam desse trabalho.
O primeiro desenvolvimento da inteligência, aquele que faz perceber as primeiras ideias, é produto de uma ação que se exerce imediatamente sobre as sensações.
Para obter um segundo desenvolvimento, ou para adquirir novos conhecimentos, da mesma forma temos três condições: ideias adquiridas por um primeiro trabalho; novo trabalho sobre essas primeiras ideias; novas ideias que resultam desse novo trabalho. De tal sorte que se trata sempre de um senti [sentido] ou de um connu [conhecido], e de operar sobre esse sentido ou conhecido, a fim de adquirir as primeiras ideias, ou de chegar a novas ideias.
1º Sensações, operações, primeiras ideias;
2º Primeiras ideias, operações, novas ideias;
3º Novas ideias, operações, etc.
É sempre a mesma coisa, sem que possamos assinalar limites à inteligência.
Sendo, pois, todos os nossos conhecimentos produto de um trabalho do espírito, da ação dessas faculdades, precisamos ter delas uma ideia, determinar-lhes o número, e essa determinação parece inicialmente apresentar grandes dificuldades.
Quem nos dirá, com efeito, de quantas maneiras diferentes devemos agir para dar à inteligência todos os seus desenvolvimentos? Quantas potências o homem deve fazer agir em si para elevar-se de um estado puramente sensitivo ao nível de um Aristoteles, de um Descartes, de um Newton?
Nós encontraremos esse número preciso de faculdades, ou antes, ele vai mostrar-se por si mesmo, se nos lembrarmos de tudo o que o estudo da natureza exige.
Três condições são indispensáveis, e elas bastam a todos os nossos conhecimentos, do mais simples de todos os sistemas, como à mais vasta das ciências.
Nós dissemos (pág. 55): é preciso inicialmente fazer ideias muito exatas de todas as partes do objeto que estudamos; e é a atenção que no-las dará.
Mas como essas ideias formarão o corpo de uma ciência, se não se ligarem umas às outras? É preciso então conhecer suas relações; e é a comparação que as descobre.
A ciência não existe ainda. Não merecerá seu nome senão a partir do momento em que, de relação em relação, o espírito terá se elevado ao laço fundamental por onde tudo começa. Ora, é o raciocínio [raisonnement] que nos leva até os princípios, como desses princípios nos faz descer até às consequências mais distanciadas.
Atenção, comparação, raciocínio: eis todas as faculdades distribuídas à mais inteligente das criaturas; uma a menos, e poderia ser apenas o raciocínio, e deixaríamos de ser homens; uma a mais, e não poderíamos imaginá-lo.
Pela atenção, Galileu descobre que os corpos, tombando verticalmente perto da superfície da terra, percorrem quinze pés no primeiro segundo, quarenta e cinco no segundo, setenta e cinco no terceiro, de maneira que os espaços percorridos durante os segundos que se seguem, são entre si como os números 1, 3, 5, 7, etc.
Pela comparação dessa rapidez com a que adquiria o corpo, se estivesse colocado à distância da lua, Newton descobriu que a gravidade diminui como cresce o quadrado da distância ao centro da terra.
Pelo raciocínio ele demonstra que essa regra aplica-se ao sistema planetário inteiro, e que se trata de uma lei da natureza.
Pela atenção, nós descobrimos os fatos; pela comparação, apreendemos suas ligações; pelo raciocínio, nós os reduzimos em sistema.
Por uma atenção, mas por uma atenção continuada, a que temos bem denominado uma longa paciência, mostram-se enfim essas ideias felizes que anunciam a presença do gênio: pela comparação, o gênio adquire extensão; pelo raciocínio, adquire a profundidade.
Pela atenção que concentra a sensibilidade sobre um único ponto; pela comparação que a partilha, e que não é senão uma dupla atenção; pelo raciocínio que a divide ainda, e que não é senão uma dupla comparação, o espírito se torna então uma potência; ele age, ele faz: e como age de três maneiras diferentes, e dessa tripla maneira de agir resultam as ciências de que nossa natureza mais se honra, permitir-me-eis concluir que a alma, considerada como um ser inteligente, é uma potência que se compõe de três potências; que tem três poderes, nada mais que três; que tem três faculdades, e apenas três.
Mas entendo as objeções. O que! a sensibilidade que inicia a nossa existência, a memória que a continua, o julgamento que nos dá o conhecimento, a reflexão que nos faz adentrar no interior de nós mesmo, e a imaginação, a mais brilhante e a mais facunda de nossas faculdades, não serão mais faculdades! Quais são as pretensões da filosofia? Acredita ela que, dividindo-as, classificando-as segundo suas necessidades, ou segundo seus caprichos, irá mudar a natureza das coisas?
A filosofia responderá que pela sensação nada fazemos, mas que acontece em nós; que a sensibilidade é uma simples capacidade, uma propriedade de nossa alma, que não é uma faculdade;
Que a memória é produto da atenção, ou o que resta de uma sensação que vivamente nos afetou;
Que no julgamento, tomado por uma percepção de relação, nós não agimos: nós agíramos, na verdade, pois fora preciso comparar, mas a percepção da relação vem após a ação; o trabalho do espírito termina no momento em que ele percebe a relação.
A filosofia não negará, sem dúvida, que a reflexão e a imaginação sejam faculdades, e mesmo faculdades às quais devemos tudo o que há de belezas e de riquezas nas artes, tudo o que há de profundidade nas ciências; mas ela responderá que a imaginação, qualquer que seja o brilho que a envolva, é apenas a reflexão quando combina as imagens; e que a reflexão, compondo-se ela mesma de raciocínios, de comparações e de atos de atenção, não é uma faculdade distinta dessas faculdades.
O entendimento humano compreende, pois, três faculdades, e apenas três: a atenção, a comparação e o raciocínio.
1 Do livro: Leçons de philosophie, ou Essai sur les facultés de l’ame, tome 1, quatrième leçon. Paris, 1815. Par M. Loromiguiere, professeur de philosophie à la Faculté des Lettres de l’Academie de Paris. Traduzido do francês pela equipe do GEAK / IPEAK.
Palavra entendimento na Filosofia espírita
(…) “Nem todos sabem agir segundo os conselhos dessa razão, não dessa razão que se avilta e se arrasta ao invés de marchar; dessa razão que se perde em meio aos interesses materiais e grosseiros, mas dessa razão que eleva o homem acima de si mesmo; que o transporta para regiões desconhecidas, chama sagrada que inspira o artista e o poeta; pensamento divino que eleva o filósofo; sopro que arrasta os indivíduos e os povos; razão que o vulgo não pode compreender, mas que aproxima o homem da divindade mais que qualquer outra criatura; entendimento que sabe conduzi-lo do conhecido para o desconhecido e o faz executar os atos mais sublimes. (Revista Espírita, janeiro de 1861 - Ensino espontâneo dos Espíritos - A voz do anjo da guarda.)
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"Antes da encarnação, os Espíritos planam nas esferas celestes: os bons gozando a felicidade, os maus entregando-se ao arrependimento, vítimas da dor de serem abandonados por Deus. Mas, conservando a lembrança do passado, o Espírito se recorda de suas infrações à lei de Deus e Deus lhe permite, em nova existência, escolher suas provas e sua condição, o que explica por que muitas vezes encontramos nas classes inferiores da Sociedade sentimentos elevados e entendimento desenvolvido, ao passo que nas classes superiores por vezes encontramos inclinações ignóbeis e Espíritos muito brutos.” (Revista Espírita, março de 1862 - Ensinos e dissertações espíritas - A reencarnação)
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"Quando Moisés trouxe aos hebreus uma lei que pudesse tirá-los do estado de escravização em que viviam e reavivar neles a lembrança de seu Deus, que haviam esquecido, foi obrigado a dosar a luz à capacidade de visão e a ciência à capacidade de entendimento deles. (Revista Espírita, outubro de 1863 - Dissertações espíritas - Tendo Moisés proibido evocar os mortos, é permitido fazê-lo?)