Sobre virtude, mérito, demérito e imputação
Com intuito de compreender melhor o que sejam a virtude, o mérito, o demérito e a imputação, traduzimos alguns itens que tratam desses temas de um dos livros do filósofo francês Paul Janet, que também foi escritor e professor universitário em Paris, no século XIX.
Elementos de moral
Por Paul Janet[1]
Noções preliminares
§ 1. - Ponto de partida da moral. - Noções comuns.
Todas as ciências têm por objeto certas noções elementares que lhes são fornecidas pelo uso comum dos homens. A aritmética não existiria se o homem não tivessem começado por contar e por calcular, em razão de suas necessidades, e se já não tivessem tido algumas ideias do número, da unidade, das frações, etc. A geometria não existiria tampouco, se os homens não tivessem tido também algumas ideias do redondo, do quadrado, da linha, etc. Do mesmo modo, a moral supõe um certo número de noções que existem em todos os homens, pelo menos em algum grau. O bem e o mal, o dever e a obrigação, a consciência, a liberdade e a responsabilidade, a virtude e o vício, o mérito e o demérito, a sanção, a pena e a recompensa, são ideias que o filósofo não inventou, mas que empresta do senso comum para esclarecê-las e aprofundá-las.
Comecemos então por lembrar rapidamente as noções elementares e comuns cuja análise e esclarecimento serão objeto desde tratado, e expliquemos os termos dos quais nos serviremos para exprimi-los.
Todos os homens, todos os países, distinguiram duas espécies de ações, uma que denominamos boas, outras que denominamos más. Todas as ações boas, consideradas no que elas têm em comum, são o que chamamos o bem; todas as ações más, considerada no que elas têm em comum, são o que chamamos o mal.
O bem, uma vez concebido como tal, impõe-se imediatamente ao homem como devendo ser cumprido: ele é obrigatório. O mal, ao contrário, é imediatamente concebido como devendo ser evitado. O dever é essa lei pela qual nós somos obrigados a fazer o bem e evitar o mal. É chamada também de lei moral. Essa lei, como todas as leis, ordena, proíbe e permite: ora é imperativa, ora proibitiva, ora permissiva.
Da lei que comanda passemos ao sujeito, que obedece, que é capaz de fazer o bem ou o mal, isto é, ao agente. Para que um agente seja obrigado a obedecer uma lei, é preciso que ele a conheça e a compreenda. Em moral, como em legislação, a ninguém aproveita a ignorância da lei. Há, pois, em todo homem um certo conhecimento da lei, isto é, um discernimento natural do bem e do mal: esse discernimento é o que chamamos a consciência ou por vezes o senso moral.
A consciência é um ato do espírito: é um julgamento. Todavia, não é somente o espírito que é advertido do bem e do mal: é o coração. O bem e o mal, realizados por outrem ou por nós mesmo, determinam em nós emoções, afeições de diversas naturezas. - O conjunto dessas emoções ou afeições é o que se chama o sentimento moral.
Não basta que o homem conheça e distinga o bem e o mal, e experimente por um ou outro sentimentos diferentes. É preciso, para ser um agente moral, que o homem seja capaz de escolher entre um e outro: não se pode ordenar-lhe o que ele não possa fazer, nem lhe proibir o que ele fosse forçado a fazer. Esse poder de escolher é a liberdade, ou livre-arbítrio.
Um agente livre, que possui o discernimento do bem e do mal, é considerado responsável por suas ações; quer dizer que responde por elas e delas presta contas, sofrendo as consequências: ele é a verdadeira causa de suas ações. Suas ações, por conseguinte, podem lhe ser atribuídas, levadas à sua conta, em outras palavras, imputadas. O agente é responsável, as ações lhe são imputáveis: responsabilidade e imputabilidade exprimem a mesma ideia, consideradas sob dois pontos de vista, seja do ponto de vista do agente, seja do ponto de vista da ação.
As ações humanas, como dissemos, são ora boas, ora más. Essas duas qualificações têm graus, em razão da importância ou da dificuldade da ação. É assim que uma ação é conveniente, estimável, bela, admirável, sublime, etc. Por outro lado, a ação má é ora uma simples falta, ora um crime. É culpável, baixa, odiosa, execrável, etc.
Se, num agente, considera-se o hábito das boas ações, uma tendência constante à conformar-se à lei do dever, esse hábito ou tendência constante chama-se virtude, e a tendência contrária chama-se vício. Se consideramos esse hábito em geral, com relação a toda ação possível, temos o que se chama a virtude ou o vício; se for com relação a determinadas ações tem-se as virtudes ou os vícios.
Ao mesmo tempo que o homem sente-se obrigado por sua consciência a buscar o bem, ele é arrastado por sua natureza a buscar o prazer. Quando goza do prazer, sem nenhuma mescla de dor, ele é alegre; e o mais alto grau de prazer possível, com a menor soma de dor possível, é a felicidade. Ora, a experiência mostra que a felicidade não está sempre em harmonia com a virtude, e que o prazer não está necessariamente unido à realização do bem.
Todavia, nós achamos injusta uma tal separação, e cremos numa ligação natural e legítima entre o prazer e o bem, a dor e o mal. O prazer, considerado como a consequência devida ao cumprimento do bem, chama-se recompensa; e a dor, considerada como a consequência legítima do mal, chama-se punição.
Quando o homem age bem, crê ter o direito a uma recompensa; todos os outros homens têm o mesmo julgamento. Quando agiu mal, ao contrário, o homem crê - e todos os homens creem, sem hesitar, como ele - que deve pagar essa má ação com um castigo. Esse princípio, em virtude do qual declaramos o agente moral digno da felicidade ou da desgraça, conforme tenha agido bem ou mal, é o princípio do mérito e do demérito.
O conjunto das recompensas e das punições ligadas à execução ou a violação de uma lei chama-se sanção; a sanção da lei moral se chamará, então, sanção moral.
Toda lei supõe um legislador. A lei moral suporá assim um legislador moral: é por aí que a lei moral nos leva a Deus. Toda sanção humana ou terrestre tendo-se demonstrado insuficiente, pela observação, é preciso à lei moral uma sanção religiosa. É assim que a moral nos conduz à imortalidade da alma.
Se observarmos o conjunto das ideias que acabamos de resumir brevemente, veremos que a cada um dos graus que assinalamos, há sempre dois contrários opostos um ao outro: o bem e o mal, - a ordem e a proibição, - a virtude e o vício, - o mérito e o demérito, - o prazer e a dor, - a recompensa e a punição.
A vida humana se apresenta, assim, sob dois aspectos. O homem pode escolher entre os dois. Esse poder é a liberdade. Essa escolha é difícil e laboriosa: exige de nós incessantes esforços. Por isso a vida é tida como uma prova, e quase sempre é representada como um combate. Não se deve representá-la como um jogo, mas como um vigoroso e valente esforço. A luta é sua condição, a paz é seu prêmio.
§ 2. - Objeto, divisão, método da moral. — Sua utilidade.
I. Objeto da moral.
A moral pode ser considerada como ciência ou como arte.
Chama-se ciência um conjunto de verdades simultaneamente ligadas, relativas a um único e mesmo objeto. A ciência tem por objeto próprio o conhecimento.
Chama-se arte um conjunto de regras e de preceitos destinados a dirigir a atividade para um determinado objetivo; a arte tem por objeto próprio a ação.
A ciência é teórica ou especulativa: a arte é prática.
A moral é uma ciência, enquanto busca conhecer e demonstrar o princípio e as condições da moralidade; é uma arte, enquanto no-la mostra e nos prescreve suas aplicações.
Como ciência, a moral pode ser definida a ciência do bem ou do dever.
Como arte, a moral pode ser definida como a arte de bem viver ou ainda a arte de ser feliz, sendo a felicidade, como veremos, a consequência necessária da virtude.
II. Divisão. — A moral divide-se em duas parte: em uma ela estuda os princípios e na outra as aplicações; numa estuda o dever, na outra estuda os deveres. Daí uma moral teórica e outra prática. Chama-se também a primeira de moral geral, e a segunda de moral particular, porque a primeira estuda o caráter comum e geral de todos os nossos deveres, e a segunda estuda principalmente os deveres particulares que se diversificam conforme os objetos e as circunstâncias. É na primeira sobretudo que a moral tem o caráter de ciência, e na segunda o caráter de arte.
III. Método. — Tendo sido a moral definida e dividida, resta-nos determinar-lhe o método.
Chama-se método o meio ou o conjunto de meios dos quais nos servimos, em uma ciência, para descobrir a verdade.
Sob esse ponto de vista distinguem-se geralmente as ciências em duas classes: ciências de observação e ciências de raciocínio. Umas, como a física, partem dos fatos para chegar às leis; outras, como a geometria, partem dos princípios (axiomas ou definições) para tirar deles as consequências. As primeira procedem por indução; as segundas por dedução. A moral é uma ciência de observação ou uma ciência de raciocínio? Uma ciência indutiva ou dedutiva?
Alguns filósofos pensaram que a moral deve ser uma ciência dedutiva como as matemáticas. A experiência, dizem eles, é incapaz de fundar a moral; porque, de um lado, a experiência bem nos ensina como os homens agem, mas não como deveriam agir. De outro, nenhuma experiência jamais poderá constatar que um ato de virtude se tenha realizado no mundo, mesmo por nós; pois, se um tal ato existe, é preciso que seja puro de todo motivo interessado; ora, quem poderia afirmar, não somente por outrem, mas por si mesmo, que num ato qualquer o interesse pessoal não se tenha mesclado, à nossa revelia, em algum grau? A observação da natureza humana é, pois, inútil e impotente para constituir a moral. A moral, por conseguinte, deve partir de certas ideias evidentes por elas mesmas: o bem, o dever, o mérito e o demérito, etc., etc., deduzir-lhes as consequências, como a geometria parte da ideia de sólido, de superfície ou de linha, e a aritmética da ideia de número, de unidade, de fração, etc.
Certamente a moral é, pelo menos em parte, uma ciência de dedução. Assim, a moral prática deduz-se da moral teórica; as aplicações devem ser retiradas dos princípios, e, no estabelecimento dos próprios princípios, recorre-se frequentemente ao raciocínio.
No entanto, por outro lado, se não se apelar à observação e à experiência, pode-se estabelecer uma moral ideal e toda abstrata, que se aplicaria a criaturas possíveis e fictícias, mas não a criaturas reais; ora, trata-se, em moral, do homem real, e não de um homem fictício e imaginário. Não se pode impor a um ser uma lei que não seja conforme à sua natureza: o que deve ser tem que ter uma certa proporção com o que pode ser. "O homem não é anjo nem animal, disse Pascal; e quase sempre quem quer fazer o anjo faz o animal.” Não é necessária, pois, uma moral que o eleve acima do homem, tampouco uma que rebaixe. Para conhecer o homem tal como ele deve ser, precisa conhecê-lo primeiro tal como ele é. Ora, é somente a observação que nos pode levar a conhecer a natureza humana. A moral já supõe, por isso mesmo, a experiência e a observação. (…)
IV. Utilidade da moral. — Os antigos se perguntavam "se a virtude pode ser ensinada." Podemos também nos perguntar se ela deve ser ensinada. A moral, fala-se, repousa bem mais no coração do que no raciocínio: é pela educação, o exemplo, o hábito, a religião, o sentimento, muito mais que pela teoria, que os homens se habituam à virtude. Se assim fosse, a ciência moral não teria nenhuma utilidade.
Entretanto, ainda que seja verdade que nada substitui a educação e o exercício para tornar os homens felizes e virtuosos, isso não quer dizer que a reflexão e o estudo não pudessem dar sua contribuição, e de uma maneira eficaz. Podemos dar a esse respeito as seguintes razões:
1º Ocorre frequentemente de o mal ter sua origem nos sofismas do espírito, sofismas sempre a serviço da paixão. É necessário então afastar ou prevenir esses sofismas por uma sólida discussão dos princípios.
2º O estudo refletido dos princípios da moral os faz penetrar mais cedo na alma e lhes dá maior fixação.
3º A moralidade não consiste somente nas ações por si mesmas, mas principalmente nos motivos de nossas ações. Uma moralidade exterior e apenas por hábito ou imitação, ainda não é a verdadeira moralidade. É preciso que a moralidade seja acompanhada de consciência e reflexão. A esse respeito a ciência moral é um elemento necessário para uma educação viril; quanto mais alto é o ponto de onde se toma os princípios, mais a consciência se eleva e se esclarece.
4º A vida quase sempre oferece dificuldades morais a resolver. Se o espírito não está preparado para enfrentá-las, faltar-lhe-á segurança na decisão; sobretudo, é de temer-se que ele prefira, na maior parte do tempo, a solução mais fácil e mais cômoda. É preciso premuni-lo com antecedência contra sua própria fraqueza, habituando-o a exercitar-se no julgamento das questões gerais antes que os acontecimentos o coloquem à prova.
Tal é a utilidade da moral. Ela serve ao homem, como a geometria ao artesão: ela não substitui o tato e o sentido natural, mas os dirige e aperfeiçoa.
RESUMO
§ 1. — Ponto de partida da moral.
A moral empresta seus fundamentos do senso comum, e os devolve esclarecidos e aprofundados.
Todas as ideias morais podem resumir-se em duas séries de contrários: o bem e o mal; - a ordem e a proibição; - a virtude e o vício; - o mérito e o demérito; - o prazer e a dor; - a recompensa e a punição.
Donde se segue que a vida humana é um combate: uma luta é sua condição, e a paz é seu preço.
§ 2. — Objeto, divisão, método, utilidade da moral.
I. Objeto. - A moral pode ser considerada como uma ciência ou como uma arte.
Como ciência, pode ser definida a ciência do bem ou do dever; como arte, a arte de bem viver.
II. Divisão. - A moral divide-se em duas partes: moral teórica, moral prática.
III. Método. - A moral é uma ciência indutiva que, pela observação, recolhe em nós mesmos e nos outros a ideia do bem, e que, pelo raciocínio e a análise, decompõe essa ideia, define-a e lhe explica as consequências.
IV. - Utilidade. A moral é útil: 1º afastando os sofismas; 2º fixando os princípios no espírito; 3º fazendo-nos refletir sobre os motivos de nossas ações; 4º preparando-nos para as dificuldades que podem surgir na prática.
Ela serve aos homem, como a geometria serve ao artesão.
A virtude
Capítulo VII
“A regra das ações humanas, dissemos, é o dever. Nós conhecemos essa regra pela consciência; nós a cumprimos por liberdade. Esse cumprimento da lei, quando é persistente e fiel, é o que chamamos virtude. A virtude é, pois, o objeto da vida humana, o fim a que o homem deve propor-se a atingir e realizar aqui na Terra.
A definição precedente é suficiente para nos dar uma ideia geral da virtude, mas para melhor compreender seus caracteres, examinaremos as diferentes definições que os filósofos lhe deram e que, na maioria insuficientes, têm no entanto o mérito de examinar os diferentes aspectos do objeto do qual buscamos fazer uma ideia completa.
§ 1. — A virtude é uma ciência.
A primeira definição que examinaremos é a que Platão havia emprestado de Sócrates, ou pelo menos lhe havia tomado o germe, e ele mesmo desenvolveu profundamente. A virtude, dizia ele, é a ciência do bem; o vício é sua ignorância.
É incontestável, por um lado, que a ciência do bem é essencial à moralidade, pois como fazer o bem sem conhecê-lo? Além disso, é certo que o vício com muita frequência vem da ignorância; por isso é muito importante esclarecer os homem para melhorá-los. Ademais, ainda que, quando se julguem os homens se deva levar em conta o estado de sua consciência, e que aquele que age sinceramente conforme sua consciência não tenha nenhuma censura a fazer-se, é certo que não podemos chamar virtude, no sentido próprio do termo, a realização do mal, ainda que o mal seja tomado pelo bem. Talvez se pudesse escusar o fanatismo de um Brutus[3] ou de um Ravaillac[4], se eles agiram sob a inspiração da consciência, mas ninguém considerará suas ações como atos de virtude. Não será dado esse belo nome a uma boa vontade cega, ou a honestas intenções funestas. É preciso, pois, reconhecer que o conhecimento do bem é uma das condições essenciais da virtude.
Tais são as razões que podemos alegar em favor do princípio de Platão, mas elas não são suficientes para justificá-lo completamente, pois Platão não diz apenas que o conhecimento é indispensável à virtude, mas que é a própria virtude. Isso é evidentemente excessivo e contrário à experiência. Conhecer o bem não é suficiente, é preciso querê-lo. Não basta nem mesmo querê-lo em geral, é preciso esforçar-se para realizá-lo, e é esse esforço que se pode considerar como a fonte da moralidade humana. Video melhora proboque, deteriora sequor,[5] diz a Medea de Ovídio. — Eu não faço o bem que eu gosto, e faço o mal que eu odeio, diz Racine traduzindo São Paulo. Essas duas máximas célebres exprimem um estado psicológico inconciliável com a teoria de Platão, e ele mesmo não ignorou essa situação; ele até a descreve em seu diálogo das Leis, e no entanto não renuncia à sua teoria. "Eis, diz ele, a maior ignorância: é quando, julgando que uma coisa é bela e boa, em vez de amá-la temos por ela aversão; e também quando amamos e abraçamos o que reconhecemos mau e injusto.”[6] Eis o fato bem reconhecido e perfeitamente descrito.
Todavia, não é estranho chamar de maior ignorância essa oposição entre a razão e o desejo? É ignorância reconhecer que uma coisa é má e escolhê-la, que uma coisa é boa e desviar-se dela? Platão também se recusa, de ordinário, admitir que o homem que faz o mal tenha um conhecimento verdadeiro do bem. Ele rejeita esta expressão de todas as línguas: “ser vencido pelo prazer.” Ele pergunta se o homem pode fugir voluntariamente do que ele sabe lhe ser bom ou vantajoso, ou buscar voluntariamente o que ele sabe lhe ser mau ou nocivo, esquecendo-se que o bom ou o mau não são sempre a mesma coisa que o útil ou o nocivo, nem, principalmente, que o prazer ou a dor. Esses princípios levam a deploráveis consequências. Platão afirma que a maldade é involuntária. “Ninguém, diz ele, é mau porque o quer; torna-se mau por uma má disposição do corpo, ou como consequência de uma má educação, desgraça que pode ocorrer com qualquer pessoa, malgrado seu.” Certamente isso é verdade em muitos casos, mas não em todos; e pode-se dizer mesmo que, de maneira geral, se em todos os homens há uma parte do vício que vem da ignorância, há também uma que vem da vontade.
§ 2. — A virtude é uma harmonia, a concordância da alma com ela mesma.
Se Platão enganou-se, ou pelo menos foi além do verdadeiro reduzindo a virtude à ciência, em contrapartida lançou luz de maneira admirável num dos caracteres essenciais da virtude, num de seus traços mais amáveis: a harmonia, a concordância, o equilíbrio que ela estabelece na alma. A virtude, diz ele, é a saúde da alma, o vício é sua enfermidade. A vida do homem precisa de concordância e de harmonia; o sábio é um musicista.
Essa bela ideia de ordem e de concordância na vida, como lei suprema da virtude, é absolutamente contrária à doutrina exagerada dos místicos estóicos, segundo a qual a virtude é a renúncia, o desapego, a morte de si mesmo[7]. Não seria bastante desapegar-se dos vícios e dos excessos das paixões, seria preciso separar-se ainda da fonte de todo vício e de toda paixão, isto é, do corpo, da vida exterior que semeia as tentações sob nossos passos. Eis a alma reduzida unicamente a ela mesma. Ela está tranquila, segura? Não, pois a fonte das paixões e dos desejos permanece ainda na sensibilidade. Seria preciso então calá-la afastando tanto quanto possível de seu coração todos os sentimentos. Todavia, a própria inteligência não é, por sua vez, o princípio de mil vícios, a dúvida, o orgulho, a falsa ciência? Ataquemos, então, essa raiz enferma. O que resta? Eu e minha vontade. Vã ilusão! Tanto assim que o eu subsiste, o amor-próprio vive nele, e ele sabe tomar as figuras mais cambiantes e menos reconhecidas, antes que perecer ele próprio. “Nada de tão oculto do que seus desígnios, di La Rochefoucauld, que o conhecia bem; nada mais hábil que suas condutas; suas flexibilidades não se podem representar; suas transformações as das metamorfoses, e seus refinamentos os da química. Ele vive de tudo e vive de nada; acomoda-se com as coisas e com a sua privação; passa mesmo para o partido das pessoas que lhe fazem guerra, e entra nos desígnios delas e, o que é admirável, odeia a si mesmo junto com eles; conspira a própria perda, trabalha ele próprio por sua ruína; enfim, nada o preocupa além de ser, desde que seja, e quer ser seu inimigo. Não é de estranhar que se junte algumas vezes à mais rude austeridade, e que entre tão decididamente em sociedade com ela para destruir-se, porque, ao mesmo tempo que arruina-se num ponto, restabelece-se num outro.” Eis o inimigo que precisa ser abafado se se quiser suspender em sua fonte o princípio de onde nascem todos os desregramentos. E quando se houvesse destruído, caso se conseguisse (o que é impossível), ter-se-ia destruído o próprio homem, e nada mais restaria. Esse fantasma para apavorar as pessoas não é a virtude aconselhada e admitida pela razão, e é impossível que a perfeição de um ser consista em anular-se. Esses diferentes excessos são aqueles aos quais se deixaram arrastar os alexandrinos, os quietistas, os falsos místicos de todos os tempos e, de um ponto de vista diferente, os próprios estóicos, quando, exagerando o princípio do dever, eles recomendavam a supressão de todas as paixões.
Humanamente falando, não nos parece que a virtude exija outro desapego do que o do mal, e conquanto seja certo dizer que é preciso vigiar o mal em sua raiz, não se deve esquecer que, no homem, a fonte do mal é, ao mesmo tempo, a fonte do bem. (…)
Platão, frequentemente acusado de misticismo, é admirável também sobre esse ponto: “Tudo o que é bom é belo, disse ele, e não há nada de belo sem harmonia… (…) É com o mesmo sentimento justo e elevado que Platão fala dos sentidos, e em particular da visão e da audição. “A vista, diz ele, é a maior causa de bens… Nós devemos à vista a própria filosofia, e o mais nobre presente que o gênero humano recebeu ou possa receber da munificência dos deuses…O mesmo se pode dizer da voz e da adição.[8] (…)”
O que dizemos do corpo, com Platão, também é verdadeiro com relação à inteligência, ao sentimento, à própria paixão, e ao homem como um todo. O importante não é suprimir os instrumentos, as redes de nossa atividade, destruir a própria atividade e fazer do homem, antes do tempo, uma árvore morta, é ensinar ao homem a usar convenientemente de todas essas possibilidade, a conhecer o valor de cada uma delas, a estimá-las e a cultivá-las conforme a excelência de cada uma. Assim a razão declara que o corpo deve ser o servidor da alma, e não a alma a servidora do corpo. No entanto, um servidor não é um inimigo. Declara também que os sentimentos que nos ligam à vida, à família, à pátria, ao gênero humano, devem ser respeitados nos limites fixados pela razão; ela nos diz ainda que é belo cultivar sua inteligência, mas sem prejuízo para a atividade e a virtude. Ademais, uma moral sã permite ao homem fazer uso de tudo o que ele reconhece em si mesmo, sob a vigilância e a censura da consciência. Assim entendida, a virtude não é mais uma violenta guerra do homem contra si mesmo, uma separação daquilo a que ele está unido pela natureza, uma supressão impossível do que é indispensável à vida; é uma bela luta contra a tirania do corpo, contra os excessos das paixões, contra as presunções da ciência, contra as tentações de todas as nossas faculdades, que aspiram todas a sair de seu papel e a ultrapassar sua posição; é um equilibro, uma paz, imitadas da paz e da harmonia do universo.
É ainda nesse sentido que se pode dizer com Platão que a virtude é a imitação de Deus; sendo Deus o princípio de toda ordem e de toda harmonia, colocar em nós mesmos a ordem e a harmonia, é imitar Deus, tanto quanto nos seja possível.
§ 3. — A virtude é um hábito e um justo meio.
Após Platão, Aristóteles definiu a virtude como “um hábito.” É ainda uma observação excelente e verdadeira. Um ato particular pode ser bom, mais não é a virtude. A disposição para cumprir de tempos em tempos algum ato de virtude também não é a virtude; a não ser assim, todos os homens seriam virtuosos. É preciso uma disposição constante, seguida de efeito, para bem fazer. Essa visão completa e precisa a de Platão. O que é o equilíbrio de todas as faculdades da alma? É o hábito de cada uma delas, em particular, de não ultrapassar seus legítimos limites. O equilíbrio da alma não é um estado de momento, é um estado constante que nasce no hábito. No entanto, não se deve confundir o hábito com a rotina. Aquele que, como uma máquina faz sempre a mesma coisa, da mesma maneira, sem dar-se conta do motivo de suas ações, é a sombra de virtude de que fala Platão no Fédon. A verdadeira virtude tem sempre consciência de si mesma, mesmo quando seja mais fácil e a mais natural. Para tornar-se um hábito, a virtude deve ter começado por não ser virtude, mas um esforço que, frequentemente vitorioso, tornou-se fácil. A definição de Aristóteles exprime a vitória e não a luta. Com efeito, a luta não é precisamente a virtude, mas o esforço daquele que a aspira. É o que exprimem estes versos de Hesíodo:
Les dieux out mis la peine et la douleur au-devant de la vertu.[9]
Aristóteles acrescenta à sua definição de virtude um outro caractere: o do justo meio. Trata-se de um princípio muito vago, pois onde está o meio? Eis a questão. Aristóteles diz que, na determinação do meio, é preciso atentar para todas as circunstâncias que acompanham a ação. O que é o meio para um indivíduo não o é para o outro. Essa fórmula significa dizer que é preciso buscar em tudo o que é digno, isto é, o bom. Ela não serve, pois, para fixar de maneira exata o ponto justo que a virtude deve visar. Entretanto, ela nos dá um caractere intrínseco que não é sem importância.
Assinalemos agora algumas outras definições mais modernas da virtude.
§ 4. — Outras definições.
Malebranche definiu a virtude como o amor à ordem. Essa definição não é falsa, mas precisa de explicação. Sem dúvida, é preciso amar a ordem, mas o essencial da virtude é a vontade enérgica de conformar-se à ordem. Que essa vontade seja ajudada e solicitada pelo amor à ordem, seja, mas ela não deve confundir-se com ele; sem isso a virtude não passaria de uma disposição natural mais ou menos viva, e não mais um hábito adquirido pela vontade. O princípio desse erro está numa confusão já assinalada acima, entre o desejo e a vontade; no entanto, se entendemos aqui por amor à ordem o próprio resultado desse esforço de que falamos, será muito verdadeiro dizer que a virtude consiste em habituar-se a amar a ordem e nisso encontrar seu prazer.
Espinosa definiu a virtude pelo poder, e o poder é “o esforço que a alma faz para perseverar em seu ser e para aumentá-lo.”
Essa definição é verdadeira num sentido, pois é certo que a virtude é uma força, e que essa força consiste em conservar e aumentar a perfeição humana; mas é preciso acrescentar que esse poder é livre e não consiste somente no desenvolvimento necessário da natureza das coisas, como o acreditava Espinosa.
Uma outra definição da virtude é dada por David Hume, que assim denomina toda qualidade agradável ou útil a nós mesmos ou aos outros. Com efeito, esse era o sentido de virtus para os antigos, ainda que esse termo fosse mais comumente aplicado às qualidades enérgicas. Essa definição destrói a ideia de virtude, a ponto de levar esse filósofo quase a considerar virtude as vantagens do corpo e do espírito: assim a saúde, a beleza, a alegria seriam virtudes. Um tal sistema é mais engenhoso que sólido.
Uma ideia mais verdadeira de virtude é a de Kant, que no-la apresenta como uma obediência aos mandamentos da razão. O homem é dividido entre a razão e a sensibilidade, mas elas não agem sobre ele da mesma maneira: uma arrasta, outra ordena, e, se bem observarmos, veremos com Kant que é porque a sensibilidade arrasta que a razão toma uma forma imperativa e apresenta-se como uma disciplina; pois, se a vontade não fosse dividida, a razão apenas teria que se mostrar para ser seguida. Todavia, às seduções da sensibilidade ela é obrigada a opor uma espécie de constrangimento, não material, mas moral, isto é, uma ordem e uma disciplina. O mandamento chama a obediência. Essa maneira de representar a virtude não a rebaixa e não deve humilhar o homem, porque a obediência à razão não é uma servidão, e nada é mais humilhante que a servidão. A obediência da vontade é o ato pelo qual a pessoa se coloca, ela mesma, no nível das pessoas morais, ela se ergue então ao obedecer; o constrangimento que ela sofre não é uma força ou ameaça. Todo motivo de temor ou de submissão ao poder, que não à razão, é servil e, por conseguinte, imoral; a vontade é soberanamente livre obedecendo a um comando porque ele é racional.
Não exageremos no entanto a ideia compreendida na palavra obediência à lei. Kant quer que o homem seja apenas um soldado que não obedeça senão a disciplina e vá ao combate por ordem, e não por um amor natural pelo perigo ou a glória. Reconheço que esse amor, se é independente da obediência à lei, nada tem de moral; a obediência por si só é a moralidade absoluta? Desses princípios se seguiria não somente que o homem pode ser virtuoso sem qualquer inclinação para o bem, mas ainda que estaria aí o mais alto grau da virtude. A perfeição moral seria a apatia. Todavia, o bem não é somente um princípio imperativo, é também um principio do amor e do entusiamo. A obediência é a condição fundamental da virtude, mas esta não está completa senão quando é acompanhada da inclinação viva e fácil para o bem. O que é verdadeiro quanto à virtude em geral é verdadeiro quanto a todas as suas aplicações. Assim, é preciso fazer bem aos homens, se não por amor, pelo menos com amor. Em uma palavra, segundo Aristóteles, o homem virtuoso é aquele que se compraz em praticar a virtude. Kant admite também, em verdade, o dever do amor, mas apenas um amor prático, isto é, reduz o amor aos atos mesmos, e suprime o sentimento. Não quer o que estranhamente ele chama de amor patológico; ele tem razão se entende por isso uma sensibilidade doentia e exagerada; mas há um amor todo moral, que tem sua sede não no temperamento, mas na própria alma e que embeleza a obediência à lei. Está aí a beleza e a verdade da moral cristã. Kant diz, na verdade, que o amor não se impõe. Isso é verdade, mas os germes do amor estão em todas as almas; podemos perfeitamente bem obrigar-nos a desenvolvê-los como a desenvolver os bons hábitos e as boas vontades. Assim, o começo da virtude é o esforço da vontade, e o fim é a facilidade da vontade e a prática, não mais constrangida, mas agradável, do bem. Enfim, a moral de Kant, que é tão austera, sem dúvida não deve ser acusada de colocar muito baixo o ideal da moralidade; entretanto, poder-se-ia temer que essa bela moral degenerasse em secura e emprestasse seu princípio a um puro formalismo e a uma servil legalidade.
RESUMO
Se resumirmos todas as definições precedentes, veremos que elas exprimem todos ou quase todos os caracteres essenciais da virtude. Assim, é verdade dizer:
Com Platão, que a virtude é a ciência do bem;
Com o mesmo filósofo, que ela é a harmonia e a concordância de todas as partes de que se compõe o homem — ou ainda, que é a imitação de Deus;
Com Aristóteles, que ela é um hábito, e mesmo que é o hábito do justo meio.
Com Malebranche, que ela é o amor à ordem;
Com Espinosa, que é o esforço perseverante da alma para conservar e aumentar sua perfeição essencial.
Com Kant, enfim, que ela é a força moral pela qual nós obedecemos as ordens da razão; e para resumir todas essas definições em uma só, dizemos que a virtude é “o hábito de obedecer com amor e lucidez à lei do dever.”
O mérito e o demérito[10]
§ 1. - O mérito e o demérito
“Define-se geralmente o mérito como sendo a qualidade em virtude da qual um agente moral se torna digno de uma recompensa; o demérito seria, ao contrário, em virtude desta definição, a qualidade pela qual um agente moral se tornasse de alguma maneira digno de punição. Em outros termos, o mérito ou o demérito seriam a relação que o agente moral pode ter, seja com a recompensa, seja com o castigo.
Eu creio que a precisão das ideias exige que consideremos a ideia de mérito ou de demérito em si mesma, independentemente da recompensa ou da punição.
Para bem compreender essas duas ideias, é preciso saber que os objetos da natureza já têm em si próprios, antes de toda ação moral, um certo valor proporcionado à excelência de sua natureza.
As coisas se distinguem umas das outras, como o fez observar profundamente Malebranche, não somente pela grandeza ou a quantidade, mas ainda pela perfeição ou a qualidade. Daí uma dupla série de relações: relação de grandeza, que são o objeto das matemáticas; relação de perfeição ou de excelência, que são o objeto da moral.
"Um animal, diz Malebranche, é mais estimável que uma pedra e menos estimável que um homem, porque há maior relação de perfeição do animal para a pedra, do que da pedra para o animal; e que há menor relação de perfeição entre o animal comparado ao homens, do que entre o homem comparado ao animal. Aquele que vê essas relações de perfeição, vê verdades que devem regular sua estima, e por conseguinte, essa espécie de amor que a estima determina. Todavia, aquele que estima mais seu cavalo do que seu cocheiro, ou que acredita que uma pedra é, por si mesma, mais estimável que uma mosca… cai necessariamente no erro e no desregramento.”[11]
Não são somente as coisas ou os seres que têm entre si certas relações de excelência ou de perfeição, mas as diversas qualidades que compõem um mesmo ser têm igualmente relações do mesmo gênero; é assim que no homem encontramos a alma preferível ao corpo, o coração aos sentidos, a razão à paixão, etc. Há também aí, então, uma escala cujos degraus devem mensurar os graus de nossa estima e, por conseguinte, regular nossas ações de conformidade com essa estima.
Tendo cada ser recebido da natureza um certo grau de excelência, o que caracteriza o homem entre todos os seres, é que ele é capaz, por sua vontade, de elevar-se acima do grau de excelência que recebeu individualmente e de aproximar-se indefinidamente do mais alto estado que se pode conceber da natureza humana; ou pode descer abaixo desse grau. No primeiro caso, ele ganha em valor e em excelência; no segundo, ele perde e se rebaixa: sacrifica alguma coisa de seu valor.
“Eu chamo mérito o aumento voluntário de nossa excelência interior; chamo demérito a diminuição voluntária dessa excelência. É uma espécie de alta ou de baixa moral, para emprestar uma imagem da linguagem financeira.
O preço moral do homem, seu valor moral é, com efeito, suscetível, como os valores econômicos, de subir ou descer, e isso somente pela nossa vontade. Aquele que faz o bem ganha em valor: ele tem mérito, sua ação é meritória. Aquele que faz o mal perde em mérito, sua ação é demeritante.
O demérito não é somente a ausência de mérito: o não-mérito. A ausência de mérito consiste em não fazer nem bem nem mal, o que dá lugar às ações chamadas indiferentes. O demérito não é uma simples negação, uma falta, uma ausência: é de alguma forma o que se chama em matemática uma quantidade negativa, que não é um puro nada, porque uma dívida não é somente um não-haver; uma perda não é uma não-aquisição. São quantidades a menos. O demérito é, então, um mérito a menos, uma perda real, uma diminuição. “Um animal irracional não pratica nenhuma virtude, diz Kant, mas essa omissão não é um demérito, porque ele não violou nenhuma lei interior: ele não foi impulsionado a uma boa ação por um sentimento moral, e o zero, ou a omissão, é apenas uma pura negação. O mesmo não ocorre com o homem."
Algumas vezes opõe-se o princípio de que o mérito está na razão inversa da obrigação, de tal sorte que onde a obrigação fosse absolutamente rigorosa, por exemplo, não roubar ou não matar, o mérito seria de alguma forma igual a zero; no entanto, se a ação é toda de devotamento, o mérito é extremo, precisamente porque o devotamento não é obrigatório. Assim, haveria duas espécies de boas ações, umas obrigatórias, outras não. O bem seria acompanhado do dever até um certo limite: para além, não haveria mais dever, mas um campo livre e aberto à virtude e por conseguinte ao mérito. O meritório se oporia então ao obrigatório.
Quanto a nós, não admitimos essa teoria. Não há ações puramente meritórias que não sejam obrigatórias, e não há ações obrigatórias que não sejam meritórias. Enfim, não admitimos também que o mérito esteja na razão inversa da obrigação.
Dever-se-ia admitir que não haja grau no mérito, e que todas as ações boas sejam igualmente meritórias? Não, sem dúvida; mas aqui conhecemos apenas uma regra: o mérito está em razões compostas pela dificuldade e a importância do dever. Por que, por exemplo, tem-se pouco mérito por não apropriar-se do bem de outrem? Porque a educação nesse ponto nos moldou de tal modo que a maioria dos homens não experimenta nenhuma tentação desse gênero[12], e mesmo que se tivesse semelhante tentação, ter-se-ia mesmo vergonha de reivindicar publicamente o mérito. Por que há grande mérito em sacrificar sua vida à felicidade de outros homens? Porque temos um vivo apego à vida, e um sentimento de amor relativamente muito fraco pelos homens em geral. Sacrificar o que amamos muito ao que amamos pouco, por dever, é evidentemente muito difícil; por isso atribuímos a essa ação um mérito bem grande.
O que prova que é a dificuldade e não a maior ou menor obrigatoriedade da ação que faz o mérito dos atos, é que uma ação rigorosamente obrigatória pode ter o maior grau de mérito, se ela for muito difícil e exigir bastante esforço. Nada mais obrigatório que a justiça, por exemplo. Dar a cada um o que é seu é uma das máximas elementares da moral. Entretanto, suponde que um homem que gozou com toda tranquilidade de consciência, durante uma longa vida, de uma grande fortuna que acreditava ser sua, e da qual fez o mais nobre uso; suponde que no limiar da velhice ele fique sabendo que essa fortuna não é dele. Suponde, para dificultar ainda mais a ação, que somente ele saiba, e possa, por conseguinte, com toda segurança, guardá-la, se quiser; agravai a situação supondo que essa fortuna pertence a herdeiros que estão na miséria, e que o depositário, uma vez despojado, fique ele mesmo reduzido à ultima miséria. Imaginai, enfim, todas as circunstâncias que tornam o dever ao mesmo tempo mais rigoroso e mais difícil; tereis então uma ação tão meritória quanto o pode ser o devotamento mais livre e o menos severamente exigido.
É evidente também que não é só a dificuldade da ação que faz o mérito: é a importância mesma do dever. Assim, o mérito da dificuldade vencida, por si só, não tem mais valor em moral do que em poesia. Pode-se, sem dúvida impor-se uma espécie de ginástica moral, e por conseguinte provas bem difíceis, ainda que inúteis, em definitiva, mas apenas a título de provas e de exercícios, e não como deveres; e ainda será preciso que essas provas tenham alguma relação com a vida que se está chamado a levar. Suponhamos, por exemplo, que um missionário ou um viajante que seja chamado a enfrentar por toda sua vida, todos os climas, todos os perigos, exercite-se antecipadamente em empreendimentos perigosos e audazes; tais empreendimentos são razoáveis e meritórios. No entanto, aquele que por presunção, por ostentação, sem nenhum objetivo científico, se impusesse escalar montanhas inacessíveis, atravessar um braço de mar à nado, lutar abertamente com animais ferozes, etc., realizaria ações que não seriam sem mérito, porque corajosas, mas cujo mérito não equivaleria àquele que atribuiríamos a outras ações menos difíceis, mas mais sábias.
Dois elementos devem encontrar-se, então, na ação, para constituir-lhe o mérito: a dificuldade e o valor intrínseco.
Quanto ao demérito, ele está na razão da gravidade dos deveres e na facilidade para cumpri-los. Por isso o demérito está de alguma forma na razão inversa do mérito. Quando uma ação é muito pouco meritória, o contrário dessa ação é muito demeritória e reciprocamente.
Segundo esse princípio, podemos determinar da seguinte maneira a avaliação das ações morais.
§ 2. - Qualificação das ações morais
“As ações humanas, como dissemos, dividem-se em duas classes: as boas e as más. Entre os moralistas há a questão de saber se há as indiferentes.
Entre as ações boas umas são belas, heróicas, sublimes, as outras convenientes, retas e honestas; entre as más, umas são simplesmente condenáveis, as outras vergonhosas, hediondas, criminosas; enfim, entre as indiferentes umas são agradáveis e permitidas; as outras são necessárias e inevitáveis.
Daremos alguns exemplos para uma melhor compreensão desses diferentes caracteres das ações humanas.
Um juiz que distribui a justiça sem parcialidade, um comerciante que vende sua mercadoria pelo que ela vale, um devedor que paga regularmente ao seu credor, um soldado exato na manobra, obediente à disciplina e fiel ao seu posto em tempos de paz, um escolar que faz regularmente o dever que lhe é ordenado, todas essas pessoas cumprem ações boas e louváveis, mais não extraordinárias. Nós as aprovamos, não as admiramos. Dirigir economicamente sua fortuna, não entregar-se demasiadamente ao prazeres dos sentidos, não mentir, não ferir ou bater em nossos semelhantes, são ações boas, direitas, convenientes, dignas de estima, não de admiração.
À medida que as ações são mais difíceis elas se tornam belas; se são muito difíceis, nós as chamamos de heróicas e sublimes, desde que sejam boas, pois às vezes emprega-se o heroísmo para fazer o mal. Aquele que, como Harlay, diz diante de um usurpador todo-poderoso: “Quando o lacaio expulsa seu senhor, desperta grande compaixão”; aquele que, como o visconde d’Orte, respondeu a Carlos IX, após a São Bartolomeu: “Meus soldados não são carrascos”; aquele que, como Boissy d’Anglas, mantém de maneira firme e inabalável o direito de uma assembleia diante das violências sanguinárias de uma populaça amotinada; aquele que, como Morus ou Dubourg, prefere morrer a sacrificar sua fé; aquele que, como Colombo, enfrenta um oceano desconhecido e a revolta de uma tropa grosseira e supersticiosa, para obedecer a uma convicção generosa; aquele que, como Alexandre, acredita bastante na amizade para receber das mãos de seu médico uma bebida que se diz envenenada; todo homem que se devota a seus semelhantes, que, no fogo, na água, nas profundezas da terra, enfrenta a morte para salvar a vida; que, para espalhar a verdade, para permanecer fiel a uma boa fé, para servir a religião, a ciência ou a humanidade, não recua diante da fome, da sede, da miséria, da escravidão, das torturas ou da morte, é um herói.
Epitecto, o célebre estóico, era escravo. Seu senhor mandou espancá-lo por causa de uma negligência. “Ireis quebrar a minha perna”, disse, e foi o que aconteceu. “Eu bem avisei que iríeis quebrá-la”, fala pacificamente o escravo. Eis um herói. Joana d’Arc, vencida, prisioneira, ameaçada com o fogo, dizia diante de seus carrascos: “Eu bem sei que os ingleses me farão morrer, mas ainda que eles fossem cem mil goddem,[13] eles não terão este reino.” Eis uma heroína.
As más ações igualmente têm graus. No entanto, é bastante digno de nota que as mais detestáveis são aquelas que se opõem às ações simplesmente boas; ao contrário, uma ação que não é heróica não é por isso necessariamente má; e quando é má, não é o que há de mais criminoso. Alguns exemplos são ainda necessários para compreender essas nuances, de que toda gente tem o sentimento, e que se reconhece muito bem na prática, mas que são bastante difíceis de analisar teoricamente.
Ser respeitoso, por exemplo, para com seus pais, é uma ação boa e honesta, mas não heróica. Ao contrário, espancá-los, insultá-los, matá-los, são ações abomináveis, do número das mais baixas e das mais hediondas que se possa cometer.
Amar seus amigos, prestar-lhes os serviços que se possa, é atitude de uma alma direita e bem dotada, mas isso nada tem de sublime. Ao contrário, trair a amizade, caluniar aqueles que nos amam, mentir para insinuar-se junto deles, descobrir seus segredos para usá-los contra eles, são ações tenebrosas, baixas e vergonhosas.
Não se vê mérito em alguém apropriar-se dos bens de outrem; o roubo, ao contrário, é o que há de mais desprezível.
Fraquejar diante da adversidade, recuar diante da morte, não enfrentar o gelo do polo norte, permanecer em sua casa, quando o incêndio ou a inundação ameaça nossos irmãos, são ou podem ser ações vulgares, mas não são sempre ações criminosas. Acrescentemos, entretanto, que haja casos em que o heroísmo seja obrigatório, e que seja um crime não ser sublime. Um capitão de navio que colocou sua embarcação em perigo, e não fica em seu posto para salvá-la; um general que não sabe morrer, se necessário, à frente de seu exército; um chefe de Estado que, em tempos de revolta, ou tendo sua pátria ameaçada, teme a morte; um presidente de assembleia que foge diante de um motim; um médico que foge frente a uma epidemia; um magistrado que trai a justiça por medo, cometem ações verdadeiramente culpáveis. Cada Estado tem seu heroísmo que se torna obrigatório em certos casos. No entanto, será sempre verdadeiro dizer que quanto mais fácil for uma ação, menos escusável e, por conseguinte, mais odioso é não praticá-la.
Além das ações boas e das ações más, há outras que parecem não ter nenhum desses dois caracteres, não são nem más, nem boas, e por isso são chamadas indiferentes. Fazer uma caminhada, por exemplo, é uma ação que, considerada em si mesma, não é nem boa, nem má, ainda que possa tornar-se uma ou outra, conforme as circunstâncias. Dormir, acordar, nutrir-se, fazer exercícios, conversar com os amigos, ler um livro agradável, fazer música, são ações que certamente nada têm de más, e no entanto não as citaríamos como exemplo de boas ações. Não diríamos, por exemplo: tal homem é muito honesto, porque toca bem violão; um tal outro é um sábio, porque tem um bom apetite. Com mais forte razão, se se trata de ações absolutamente necessárias, como o ato de respirar e de dormir. As ações ligadas às próprias necessidades de nossa existência não têm, por isso, nenhum caráter moral: são para nós ações puramente naturais, como o são para os animais e as plantas. Outras há que não são necessárias, mas simplesmente agradáveis, e as realizamos porque estão de acordo com os nossos desejos e gostos; basta que não sejam contrárias ao bem, para que não possamos dizer que são más, mas não se segue daí que sejam boas, são as ações chamadas indiferentes.
Tal é, pelo menos, a aparência das coisas, pois, de um ponto de vista mais elevado, os moralistas não se enganaram ao dizer que não há ação absolutamente indiferente, mas que todas, em algum grau, são boas ou más, conforme o pensamento com que são realizadas.
§ 3. - Da imputação moral
Sendo livre, o homem é, por isso mesmo, responsável por suas ações: elas lhe são imputáveis. Essas expressões têm quase a mesma significação; a responsabilidade se diz somente do agente, e a imputabilidade se aplica às ações.
“O termo imputar, diz Burlamaqui, é emprestado da aritmética, e significa propriamente colocar uma soma sobre a conta de alguém. Imputar uma ação a alguém é, pois, atribui-la como a seu verdadeiro autor, colocá-la, por assim dizer, na sua conta e torná-lo responsável por ela.”
O próprio Burlamaqui distingue a imputabilidade da imputação. A primeira é uma qualidade geral das ações; a segunda é o ato pelo qual nós julgamos que tal ou qual ação deve ser atualmente imputada a seu autor, o que depende de muitas circunstâncias. Indicaremos, segundo o mesmo autor, as principais circunstâncias que, alterando as condições de responsabilidade no agente, alteram o julgamento da imputação.
As duas condições fundamentais da responsabilidade moral são, como dissemos: 1º o conhecimento do bem e do mal; 2º a liberdade de ação. Quando essas duas condições variarem, a responsabilidade variará nas mesmas proporções. Daí segue-se que:
1º O idiotismo, a loucura, o delírio em caso de doença, destruindo quase sempre ao mesmo tempo as duas condições da responsabilidade, que são o discernimento e o livre-arbítrio, obstam por isso mesmo, todo caráter moral das ações cometidas nesses diferentes estados: elas não são mais de natureza a serem imputadas ao agente. No entanto, certos loucos, não estando constantemente loucos, podem conservar, em seus estados de lucidez, uma certa parte de responsabilidade. Então é justo que se estenda, tanto quanto possível, a imunidade concedida à demência, pois não se pode jamais saber exatamente até que ponto a parte sã do entendimento foi afetada pela parte enferma. Do mesmo modo, o sono e o sonambulismo são geralmente causas de irresponsabilidade. Entretanto, tal ação, que seria o resultado de maus pensamentos concebidos durante a vigília, não escapariam totalmente à imputação; por exemplo, aquele que tivesse pensado por longo tempo na morte de seu inimigo, e que fosse matá-lo num acesso de sonambulismo, não se poderia considerar como inteiramente inocente nessa ação.
2º A embriaguês pode ser considerada como uma causa de irresponsabilidade? Não, sem dúvida; porque, por um lado, assume-se a responsabilidade pelo próprio fato da embriaguês; por outro, a pessoa sabe que ao colocar-se em tal estado expõe-se a todas as consequências e, por conseguinte as aceita implicitamente. Por exemplo, aquele que se coloca em estado de embriaguês consente antecipadamente a todas as ações baixas e grosseiras que são inseparáveis desse estado. Quanto às ações violentas e perigosas que podem ocorrer acidentalmente, como as agressões e assassinatos que nascem de querelas, certamente não se pode imputá-las ao homem embriagado com a mesma severidade que ao homem são; isso porque ele não as quis explicitamente colocando-se no estado de embriaguês; no entanto, não é inocente porque sabia que essa poderia ser uma consequência possível daquele estado. Quanto àquele que se coloca voluntariamente em estado de embriaguês com a intenção expressa de cometer um crime, a fim de obter coragem, é bem evidente que, longe de diminuir a sua parte de responsabilidade na ação, ao contrário ele a aumenta, porque fez esforços para afastar violentamente todos os escrúpulos ou as hesitações que precisamente poderiam deter o crime.
3º “Ninguém é obrigado ao impossível.” Segundo esse princípio, é evidente que não se é responsável por uma ação se se está absolutamente impossibilitado de realizá-la. Assim, não se pode querer que um paralítico, uma criança, um doente tome das armas para defender a pátria. Entretanto, não se deve colocar-se voluntariamente na impossibilidade de agir, como faziam frequentemente em Roma, por exemplo, cortando o polegar para não pegar as armas. É escusável o devedor que por circunstâncias independentes de sua vontade (incêndio, naufrágio, epidemia) fica impedido de quitar suas obrigações; mas se contrai dívidas sabendo que será impotente para quitá-las, é evidente que essa impotência não será uma justificação.
4º As qualidades naturais ou os defeitos do espírito e do corpo não podem ser imputados a ninguém, nem como bem, nem como mal. “Quem faria censuras a um homem, diz Aristóteles, porque ele é cego de nascença ou porque tornou-se tal por causa de uma doença ou de um golpe?” Assim também com relação aos defeitos do espírito: ninguém é responsável por não ter memória ou ter pouca inteligência. No entanto, como esses defeitos podem ser corrigidos pelo exercício, somos mais ou menos responsáveis por não fazer esforços para remediá-los. Quanto aos defeitos e deformidades resultantes de faltas nossas, como nossas paixões, por exemplo, é evidente que nos podem ser imputados a justo título. As qualidades naturais não são imputáveis a ninguém. Assim, não se deve glorificar a ninguém por sua força física, por sua saúde, nem mesmo por sua beleza ou sua inteligência; também ninguém deve gabar-se ou glorificar a si mesmo por tais vantagens. Entretanto, aquele que, por uma via sábia e laboriosa logrou conservar ou desenvolver sua força física, ou que, por força de vontade cultivou e aperfeiçoou seu espírito, merece elogio; é assim que indiretamente as vantagens físicas e morais podem tornar-se motivo legítimo à imputação moral.
5º Os efeitos das causas exteriores e os eventos, quaisquer que eles sejam, só poderiam ser atribuídos ao indivíduo, como bem ou como mal, se ele pudesse ou devesse produzi-los, impedi-los ou dirigi-los, e tenha sido cuidadoso ou negligente com relação a eles. Assim coloca-se à conta de um agricultor uma boa ou má colheita, conforme ele tenha bem ou mal trabalhado as terras da cultura de que está encarregado.
6º Os casos precedentes não oferecem nenhuma dificuldade, e as máximas que apontamos são apenas máximas de senso comum. A dificuldade começa quando trata-se de ações cometidas por erro ou por ignorância. O erro e a ignorância são causas de escusa? Sim e não, conforme as circunstâncias. Geralmente concorda-se, por exemplo, que a ignorância invencível e involuntária é uma escusa aceitável.[14] Assim, o selvagem que jamais conheceu outros costumes e outros hábitos além dos de seus ancestrais, e a quem jamais se falou de uma outra moral, se se supõe, aliás, que sua consciência não lhe diz nada, ele não pode ser considerado responsável pelos erros que comete em consequência de tal ignorância. A mulher indiana que se queima na fogueira acesa para cremar o corpo de seu marido, certamente tem uma atitude muito irracional; mas como lhe fora ensinado que isso consistia para ela um dever, e ela sequer supõe haver uma outra verdade além daquela, é escusável e mesmo louvável por obedecer a uma lei cruel que ninguém lhe advertiu para que desconfiasse. O mesmo não se dá com a ignorância voluntária, como seria a de um juiz que não tenha se dado ao trabalho de estudar as leis que está encarregado de aplicar. Na ordem civil admite-se como uma máxima necessária que “a ninguém aproveita o desconhecimento da lei”, ainda que de fato as leis sejam conhecidas apenas daqueles que fazem disso profissão. No entanto, pelo fato de haver leis criminais, a consciência basta para ensinar a cada homem o que é proibido fazer; não é necessário para isso conhecer o Código. Quanto às leis civis, cada um, conforme tenha interesse, toma conhecimento das leis que lhe concernem pessoalmente. Essa máxima é uma convenção necessária para a manutenção da ordem civil; no entanto, na ordem moral, ninguém dever ser realmente julgado senão conforme o conhecimento atual que tenha da lei. De resto, como é muito fácil abusar desse princípio, ou seja, que a ignorância escusa, não se deve servir-se dela senão com uma certa circunspecção, principalmente com relação a nós mesmos; ademais, ainda que a fraternidade humana nos autorize a aplicá-la aos outros quase sempre que possível, é preciso ainda que essa indulgência não degenere em frouxa complacência em favor do mal.
O mesmo ocorre com os atos cometidos sem intenção. Aristóteles diz[15], por exemplo, “pode-se, querendo mostrar o mecanismo de uma máquina, fazê-la partir sem intenção, como aquele que deixasse escapar o lançador de uma catapulta. Em outros casos, como Mérope, tomar seu próprio filho por um inimigo mortal; crer que uma lamina pontiaguda esteja na bainha, pegar uma pedra pesada por uma pedra-pomes, matar alguém com um golpe querendo defendê-lo, ou feri-lo gravemente querendo demonstra-lhe alguma destreza, assim como fazem os lutadores quando se preparam para os combates.”
7. Outra dificuldade frequentemente debatida pelos moralistas e os criminalistas é saber se somos responsáveis das ações cometidas por constrangimento: em princípio, é de todo evidente que não se pode imputar senão as ações que resultam da vontade livre. Por conseguinte, as ações forçadas, ao contrário, não são imputáveis; mas a dificuldade apenas recua, e trata-se de saber se em quais casos há constrangimento. Se o constrangimento é somente físico, de modo que apenas a força material tenha determinado a ação, é evidente que a ação não é mesmo imputável por natureza. “Nesse caso, diz Burlamaqui, o autor da violência é a verdadeira e única causa da ação, somente ele é responsável; o agente imediato, sendo puramente passivo, o fato não lhe poder ser mais imputado que à espada, ao bastão ou a qualquer outro instrumento que sirvam para golpear. Todavia, se o constrangimento, em vez de ser material é todo moral; se, por exemplo, não passa da ameaça de um mal bem grande que determina a ação, esta não pode ser considerada como totalmente involuntária, pois a vontade pode sempre resistir à violência, ou, pelo menos, sofrê-la sem ceder. Certamente, à medida que o mal com que somos ameaçados é maior, a ação se torna mais difícil e por conseguinte maior e mais heróica, se a cumprimos, mais escusável se ela se desencaminha. Nesse caso, no entanto, há apenas um grau de atenuação, mas não uma justificação. A iminência mesma da morte não pode justificar o cometimento de uma injustiça. Assim, aquele que na Revolução francesa votava contra sua consciência para escapar da guilhotina, era responsável por seus atos; há certos casos em que é preferível enfrentar a morte em vez de cometer uma covardia. Não seria escusável, por exemplo, um soldado que fugisse do campo de batalha sob o pretexto de temer a morte. E há casos semelhantes na vida civil. O martírio é um dever para aqueles que têm a fé, e foi justamente que se censurou Galileu por não ter sabido morrer em vez de deixar humilhar nele a ciência e a verdade.
Entre as ações extorquidas pela força, Burlamaqui distingue as que são absolutamente más e que a força não pode escusar e aqueles que, sento indiferentes em si mesmas, não podem ser imputadas; ele cita, como exemplo, as promessas e as convenções forçadas. No entanto, não se pode dizer que uma promessa seja absolutamente indiferente: ao prometer o que já se sabe que não irá cumprir, emprega-se a palavra para disfarçar o pensamento; consequentemente há aí uma verdadeira mentira, sem falar do abaixamento que consiste em ceder diante da força. Sem dúvida deve-se reconhecer que tais promessas não são obrigatórias, mas não é verdade que sejam inocentes. Tudo o que podemos dizer, em tese geral, é que à medida que o dever é mais difícil de cumprir, o cumprimento é mais heróico e mais sublime, e a contravenção menos condenável. Em uma palavra, a apreciação depende das circunstâncias, mas o que é certo, é que apenas a violência física pode ser escusada de maneira absoluta. O poeta latino não hesita em dizer que é preciso preferir a morte a dar um falso testemunho, e não sacrificar a honra à vida:
Summum crede nefas animam præferre pudori
Et propter vitam vivendi perdere causas.[16]
Juvenal, Sat. VIII, v. 80.
8º Uma última questão é a da responsabilidade que o homem pode ter nas ações de outrem. Em princípio, certamente nenhum homem é responsável senão por suas próprias ações. No entanto, as ações humanas estão de tal forma ligadas umas às outras que é bem raro que não tenhamos alguma parte direta ou indireta sobre a conduta dos outros. Por exemplo: 1º somos responsáveis, de certa maneira, pela conduta daqueles que nos são subordinados: um pai, por seus filhos, um senhor, por seus servidores, e em certa medida, um patrão por seus operários; 2º somos responsáveis pelas ações que poderíamos impedir quando, por negligência ou preguiça, não o fizemos. Por exemplo: se vedes um homem prestes a se matar e não fazeis nenhum esforço para impedi-lo, não sois inocente no caso da sua morte, a menos, bem entendido, que não tenhais adivinhado o que ele iria fazer; 3º sois responsável pelas ações de outrem quando com elas houverdes cooperado, seja por vossas instigações, seja mesmo por uma simples aprovação.
Quando uma mesma ação é realizada em comum, a responsabilidade é chamada coletiva, e é partilhada entre os cooperantes proporcionalmente à cooperação de cada indivíduo: a causa principal, a causa subalterna, e as causas colaterais. A causa principal é a verdadeira causa eficiente: é ela que comanda a ação ou executa a maior parte. Tal é o chefe de um complô, seja porque se tenha contentado em concebê-lo ou em combinar todas as manobras, seja porque se coloque à frente da execução. Um príncipe que não pode executar por si mesmo todas as ações que ordena, não é menos a causa principal. “Davi foi a causa principal da morte de Uri, enquanto Joab contribuiu para isso, conhecendo bem a intenção do rei.” Joab, nessa circunstância, era precisamente a causa subalterna, isto é, o agente que executa segundo uma ordem superior. O mesmo corre na Andromaca,[17] de Racine, em que Hermione é a causa principal e Orestes a causa subalterna. A responsabilidade do agente subalterno é menor, evidentemente, do que a do agente principal, mas é real e verdadeira e em razão da parte mais ou menos importante do agente secundário na ação total. No entanto, é evidente que é preciso que, para ser responsabilizado, o agente subalterno tenha agido conscientemente, senão não passa de um instrumento. Enfim, a causa colateral é aquela que concorre para a ação sem executá-la imediatamente: por exemplo, o receptador com relação ao roubo, aquele que fornece recursos financeiros em um complô, etc. Dessas distinções bastante justas, mas que não convém levar muito longe para não cair na sutilidade, Burlamaqui deduziu a regra seguinte: “Se houver condições de igualdade, as causas colaterais devem ser tratadas igualmente; todavia, as causas principais merecem, em geral, mais louvor ou censura, e uma maior recompensa ou pena do que as causas subalternas.”
RESUMO
§ 1. - O mérito e o demérito.
O mérito é o aumento voluntário de nossa excelência interior; o demérito é a diminuição voluntária dessa excelência.
Não é verdade que o mérito esteja na razão inversa da obrigação moral.
O mérito é, com razão, composto pela importância dos deveres e pela dificuldade de cumpri-los.
O demérito está na razão inversa do mérito. Quando uma ação é muito pouco meritória, o contrário dessa ação é demeritória, e reciprocamente.
§ 2. - Da qualificação das ações humanas.
Ações boas: direitas; convenientes, honestas, belas, heróicas, sublimes. Exemplos:
Ações más: condenáveis, vergonhosas, hediondas, criminosas.
Ações indiferentes: permitidas e necessárias.
§ 3. - Da imputabilidade ou da responsabilidade.
Todo agente livre e dotado de razão é responsável, isto é, deve responder por suas ações, prestar conta delas.
A imputabilidade tem o mesmo sentido, mas aplica-se somente à ação, enquanto o a responsabilidade aplica-se apenas ao agente.
As duas condições para que haja responsabilidade são: 1º o conhecimento do bem e do mal; 2º a liberdade da ação; a responsabilidade variará com esses dois elementos.
Circunstâncias que suprimem, diminuem, ou fazem variar a responsabilidade: 1º loucura, idiotismo, delírio; 2º embriaguês; 3º força maior; 4º as qualidades e os defeitos naturais; 5º as causas exteriores; 6º a ignorância; 7º o constrangimento.
Da responsabilidade nas ações de outrem: responsabilidade coletiva.
[1] Extraído do livro Éléments de Morale. Paris, 1870. Traduzido do francês pela equipe IPEAK / GEAK.
[3] Patrício, líder político e militar romano, foi um dos assassinos de Júlio César, imperador de Roma, em 42 a.C. (N.T)
[4] François Ravaillac foi o assassino de Henrique IV, Rei de França, em 14 de Maio de 1610. (N.T)
[5] Eu vejo e aprovo o melhor, e faço o pior.
[6] Leis, 1. III.
[7] Criticamos aqui os excessos do misticismo e não o que ele tem de legítimo.
[8] Platão, Timeu.
[9] Os deuses colocaram a pena e a dor antes da virtude. (N.T)
[10] Cap. VIII, extraído do livro Éléments de Moral, de Paul Janet. Paris, 1870. Paul Janet era membro do Instituto de França e professor da Faculdade das Letras. Traduzido pela equipe do IPEAK/GEAK.
[11] Malebranche, Traité de Moral, parte primeira, cap. I, XIII. Reimpresso por Henri Joly. Paris, 1882.
[12] Pelo menos de forma grosseira. Respeita-se um moinho, rouba-se uma província.
[13] Goddem, variante da palavra Goddam, termo pejorativo para referir-se aos ingleses. Essa palavra é a abreviação do juramento dos antigos soldados ingleses “God damn me” (Deus me dane), ou seja: estou pronto para o inferno. (http://www.cnrtl.fr/definition/goddam) (N.T)
[14] Já tratamos acima sobre essa questão. Vede cap. VI.
[15] Ética a Nicômaco, livro III, cap. II, § 6.
[16] Saiba que a maior vergonha é preferir a vida à honra, e perder, por amor da vida, tudo o que dá valor à própria vida.
[17] Tragédia escrita por Racine. Publicada em Paris em 1668. Andromaca e Hermione são personagens da mitologia. (N.T)