Fala-se bastante de direito e de dever, e o que se diz sobre isso poderia fazer duvidar que se tenha a respeito uma ideia bem nítida. Vamos tentar esclarecer essas duas importantes noções, pois o direito e o dever são os dois grandes pivôs da sociedade e da vida humana. Se não se trata de uma questão do dia, da hora, talvez não mereça menos que com ela nos ocupemos por alguns instantes. (…)
Tudo o que é deve ser, pois quis Deus que assim o fosse. Ora, o direito, para cada ser tomado à parte, é o conjunto das condições de sua vida própria e individual. Pelo simples fato de ser, ele tem o direito de continuar a ser e, consequentemente um direito essencial a tudo o que lhe é indispensável para conservar e desenvolver seu ser.
No entanto, o que é verdadeiro para um indivíduo é igualmente verdadeiro para todos. Todos possuem, pois, o mesmo direito de conservar e de desenvolver seu ser, e esse direito, que pertence a todos, deve ser respeitado por todos e em todos, sem o que não existiria realmente para ninguém.
Essa obrigação recíproca de respeitar o direito de outrem, única garantia que cada um pode ter de seu próprio direito, é o que chamamos dever.
Direito e dever são, de fato, a mesma coisa, considerada sob duas faces diversas: essas palavras, ligadas por uma raiz comum ao mesmo fato primitivo, apenas exprimem duas relações que mutuamente se determinam. Meu direito determina o dever de outrem com relação a mim; o dever de outrem determina em certo sentido meu direito. Assim, eu tenho o direito de alimentar-me ou de conservar-me; daí decorre o dever de outrem de não impedir-me de me alimentar e, em caso de necessidade, auxiliar-me conforme suas condições. Esse dever recíproco é ao mesmo tempo o reconhecimento e a determinação do direito que eu tenho à alimentação necessária para viver.
Todavia, se remontarmos mais alto, descobriremos, no que acabamos de dizer, uma noção mais profunda de direito e dever, correspondendo às duas leis mais gerais da criação.
Tudo o que é compõe-se de coisas ou de seres individualmente distintos, e se não fossem esses seres distintos, nada seria.
Uma rocha granítica, calcária, ou por outra, uma massa inorgânica qualquer, mesmo unida às outras, tem sua existência própria e separada; se não existissem semelhantes moléculas, a própria massa não existiria, pois ela não é senão a coleção, o conjunto das moléculas.
Do mesmo modo, as plantas e os animais não existem como espécie senão porque existem indivíduos cuja reunião forma cada uma dessas espécies; o mesmo se dá com o homem. O que é a humanidade, o gênero humano, se não a reunião dos indivíduos distintos chamados homens?
Por outro lado, nenhum indivíduo, a qualquer classe que ele pertença, pode subsistir isoladamente. Sua vida e o desenvolvimento dela depende das suas relações com os seres da mesma espécie, com todos os seres do universo. Se ele age sobre os outros, eles agem sobre ele, e bem mais poderosamente; o indivíduo não tem senão o que lhe é dado, e, com relação a isso, é forçosamente subordinado ao todo. Partes de um todo que não existiria sem eles, os seres individuais não têm por si mesmos existência possível senão nesse todo e por esse todo, no seio do qual estão mergulhados, e onde tomam perpetuamente sua porção, por assim dizer, da vida una e universal.
Lançai o olhar sobre o que vos rodeia, e reconhecereis que a existência dos corpos brutos, das pedras, por exemplo, dos cristais, dos metais, depende de uma multidão de condições químicas, de ações e de reações que continuamente se realizam na massa dos corpos.
A existência das plantas e dos animais depende de condições, de ações e de reações ainda mais numerosas e mais variadas. Eles precisam de luz, de eletricidade, de calor, do ar atmosférico, de água, de carbono, de diversos sais, que sei eu? Eles precisam uns dos outros. Os detritos vegetais formam, em grande parte, o solo onde cresce a maioria das plantas, são indispensáveis para elas. As plantas alimentam certas tribos, certos gêneros de animais destinados, eles próprios, a alimentar outros animais.
Enfim, o homem precisa de todos os outros seres; ele os coordena todos para seu próprio uso, ordena-os de alguma maneira ao redor de sua vida, para manutenção e progresso da qual eles são necessários em diversos graus. O homem precisa especialmente de seus semelhantes; no nascimento, precisa deles ainda que para sobreviver apenas um dia, e deles precisa constantemente. Sem eles, sem seu apoio, seu concurso, o que seria ele? Menos que um animal, pois careceria da inteligência que a sociedade desenvolve, e do instinto seguro do bruto, que supre neste a razão dentro dos estreitos limites fixados pela natureza, que o animal não pode ultrapassar.
Daí duas leis universais:
A lei que pode ser chamada de o indivíduo, porque ela tem por objetivo a conservação de cada ser e de cada coisa na sua unidade individual.
A lei do todo, cujo objeto é a conservação de todas as classes de seres harmonicamente ligados entre si na unidade do universo.
Essas duas leis são, como vimos, as duas condições gerais e absolutas da existência.
Cada ser encontra em si mesmo a primeira dessas leis, e para obedecê-la precisa apenas seguir seus instintos naturais, pois cada ser tende forçosamente à sua própria conservação. No entanto, se obedecesse apenas àquela lei, estaria em guerra eterna com todos os outros seres, porque, não tendo outro fim senão ele mesmo, a lei de conservação o levaria, por uma fatal necessidade, a preferir-se em detrimento dos outros, ou a sacrificá-los a si. Seu império exclusivo teria por consequência a perturbação do todo e a sua destruição, se fosse possível a desordem atingir seu ponto máximo, o que ocasionaria também a destruição do próprio indivíduo.
A lei do todo, conservadora da universalidade dos seres, também é, pois, conservadora de cada ser particular; e como consiste no concurso de cada ser para a conservação e o desenvolvimento de todos os outros seres, pela doação que ele faz de si mesmo, de acordo com uma medida determinada pelas próprias condições da conservação do todo, segue-se que o devotamento, o sacrifício, não dos outros para si, mas de si mesmo para os outros, é a primeira lei da vida individual e universal.
Considerando apenas os seres inteligentes, especialmente o homem, da lei relativa ao indivíduo deriva o direito; da lei relativa ao todo deriva o dever.
Tudo o que pode ser concebido sobre a noção de direito originalmente diz respeito ao indivíduo, pertence-lhe exclusivamente, e os direitos coletivos não são senão uma extensão desse direito primitivo aplicado a uma individualidade abstrata e, em certo sentido, fictícia. Assim, os direitos do povo, direitos coletivos, não são e não podem ser senão direitos naturais e primitivos de cada um dos indivíduos de que é composto o povo.
O que é verdadeiro quanto à universalidade dos seres, igualmente o é com relação ao homem e ao povo: o direito sozinho o mataria. Sua vida e o desenvolvimento indefinido de sua vida têm por condição união íntima e ação comum do direito e do dever, um conservador do indivíduo e de sua liberdade, que é seu próprio ser, princípio essencial de todo progresso, de todo movimento; outro conservador da unidade social, fora da qual não há ordem nem vida.
Nunca seria demasiado repetir aos homens: defendei vossos direitos com firmeza, cumpri vossos deveres fielmente. O dever sem o direito é escravidão; o direito sem o dever é anarquia.
(Do livro POLITIQUE À L’USAGE DU PEUPLE, T. 1, recueil des articles publiés dans LE MONDE
du 10 février au 4 juin 1837. La Revue des Deux Mondes e la Revue du Progrès. Traduzido do francês pela equipe do GEAK / IPEAK).