“O preconceito entorpece a alma; o medo é o primeiro passo para a escravidão; os homens não perecem na miséria senão porque lhes falta coragem, ou porque sua inexperiência os faz temer males quiméricos que eles imaginam maiores que os males reais que experimentam.” (...) Dumarsais
"O que nós chamamos razão não é senão a verdade descoberta pela experiência, meditada pela reflexão, e aplicada à conduta da vida. Com a ajuda da razão nós distinguimos o que nos pode prejudicar do que nos pode ser útil, o que devemos buscar ou o que devemos evitar. A experiência nos leva a conhecer o que é realmente e para sempre vantajoso, e o que para nós tem apenas vantagens frívolas e passageiras; por conseguinte, a razão nos leva a decidir em favor do que nos pode proporcionar a felicidade mais duradoura e mais permanente; é o que melhor convém a um ser forçado por sua natureza a desejar constantemente uma existência feliz. Assim, sem a verdade o homem não tem experiência nem razão; não tendo regra segura, ele marcha pelo caminho irregular da vida, e permanece numa infância perpétua; ele é vítima de seus preconceitos, isto é, dos julgamentos ou opiniões que adota antes de haver examinado. Sua imprudência acaba sempre por torná-lo infeliz; enganado por seus julgamentos levianos, ele não tem ideias verdadeiras sobre coisa alguma: caminha de erro em erro, e a cada passo é joguete infortunado de sua inexperiência própria, ou do capricho dos cegos que o guiam.
Com efeito, entre os seres que se chamam racionais por excelência, encontram-se bem poucos que fazem uso da razão. O gênero humano inteiro é, de raça em raça, iludido e vitimado por seus preconceitos de toda espécie. Meditar, consultar a experiência, exercer a razão, aplicá-la à sua conduta, são ocupações desconhecidas da maioria dos mortais. Para a maioria, pensar por si mesmo é um trabalho tão penoso quanto inusitado; suas paixões, seus negócios, seus prazeres, seu temperamento, sua preguiça, suas disposições naturais, os impedem de buscar a verdade: é raro que sintam bastante vivamente o interesse para descobri-la, para dela se ocupar seriamente; eles acham bem mais cômodo e mais curto deixar-se levar pela autoridade, pelo exemplo, pelas opiniões recebidas, pelos usos estabelecidos, pelos hábitos maquinais. A ignorância torna os povos crédulos; sua inexperiência e sua incapacidade os obriga a dedicar uma confiança cega naqueles que se atribuem o direito exclusivo de pensar por eles, de regular suas opiniões, de fixar sua conduta e sua sorte.
Assim, acostumados a se deixar guiar, os homens encontram-se na impossibilidade de saber para onde são levados, de distinguir se as ideias que se lhes inspira são verdadeiras ou falsas, úteis ou nocivas. Os homens que se colocam como encarregados de regular os destinos dos outros, são sempre tentados a abusar da incredulidade destes, e encontram, em seus hábitos e costumes, vantagens momentâneas para enganá-los; interessam-se em perpetuar seus erros ou a sua inexperiência; tomam para si o dever de os ofuscar, de confundi-los, aterrorizá-los com o perigo de pensar por si mesmos e de consultar a razão; mostram-lhes como inúteis, criminosas, perniciosas as pesquisas que eles poderiam fazer; caluniam a natureza e a razão; fazem-nos passar por guias infiéis; enfim, à força de terrores, de mistérios, de obscuridades e de incertezas, conseguem sufocar no homem até o desejo de buscar a verdade; calcam a natureza sob os pés de sua autoridade, submetem a razão ao jugo de suas fantasias. Os homens sentem os males e se lamentam das calamidades que experimentam, mas seus guias habilmente os enganam e os impedem de remontar à verdadeira fonte de suas penas, que se encontra sempre nos erros funestos dos preconceitos.
É assim que os ministros da religião, tornando-se em todos os países os primeiros professores dos povos, juraram um ódio mortal à razão, à ciência, à verdade. Acostumados a comandar os mortais em nome de potências invisíveis que supõem os árbitro de seus destinos, a superstição os cumula de medos, atordoa-os com seus prodígios, enlaça-os com seus mistérios, alternadamente os diverte e os aterroriza com suas fábulas.
Após ter assim preocupado e derrotado o espírito humano, ela facilmente o persuade de que somente ela tem a posse da verdade, e que é a única a fornecer os meios de conduzir à felicidade, e que a razão, a evidência e a natureza são guias que somente poderão levar à perdição os homens, que ela assegura serem cegos por sua essência, e incapazes de caminhar sem a “sua luz divina”. Por esse covarde artificio se lhes mostra seus sentidos como infiéis e enganadores, a experiência como suspeita, a verdade como impossível de desvendar, como cercada de trevas espessas, enquanto ela se mostra sem pena a todo mortal que quer afastar as nuvens com que a impostura se esforça por rodeá-la. (...)
“Privar o homem da experiência é tornar seus órgãos inúteis para ele; proibir-lhe o uso da razão é lhe interditar os meios de ser feliz; esconder-lhe a verdade é querer que ele se perca. Com efeito, como querer que ele trabalhe pela sua própria felicidade, ou que se ocupe da dos outros, se ele não conhece os objetos que deve desejar ou temer, buscar ou evitar? Como ele descobrirá a natureza desses objetos, se não lhe é permitido examiná-los por si mesmo, e se não os vê jamais senão pelos olhos dos que estão iludidos, ou dos mentirosos interessados em lhe enganar? Enfim, como o homem pode se tornar um ser racional, se lhe é interdito o exercício de sua razão sobre os objetos mais importantes à sua felicidade?
No entanto, é sobre a razão que se funda a dignidade do homem e sua preeminência sobre os outros animais. Em que se tornará essa superioridade, se não lhe é permitido fazer uso de sua prerrogativa? Como essa mesma religião que faz do homem o favorito da Providência, o objeto único de seus trabalhos, ao mesmo tempo se compraz em degradá-lo ao ponto de fazer com que não raciocinar, aviltar-se e nivelar-se aos animais seja para ele um dever?
Está no uso da razão a dignidade do homem, é com seu auxílio que ele conserva seu ser e que pode tornar sua existência feliz; sem a razão ele não passa de um autômato incapaz de fazer o que possa fazê-lo feliz. Com efeito, não é a razão que o torna sociável? A razão não o leva a sentir que ele tem necessidade de seus semelhantes para proporcionar-se os bens que seu coração deseja, e para resistir aos males que sua fraqueza o impediria de afastar? Não é a razão, auxiliada pela experiência, que lhe sugere os meios de sustentar, defender e tornar agradável para si mesmo uma sociedade cujos interesses são invariavelmente os mesmos que os seus? Não é a razão, esclarecida pela verdade, que prova ao homem que sua conservação, sua segurança, seus prazeres dependem dos recursos de seus concidadãos e da conduta que deve ter para obter a benevolência deles? Assim, a moral é fundada sobre a razão, que não é nada por si mesma, sem a experiência e sem a verdade.(...)
Disso decorre que, sem a verdade, sem a experiência, sem a razão, o homem não pode ter ideias justas nem sobre a moral, nem sobre o governo, nem sobre nenhum de seus deveres. Ele não pode ser homem nem cidadão. A verdade deve guiar a experiência, e esta conduzir à razão, que sempre nos provará que é em vão que buscamos uma felicidade sólida e durável sem a virtude, e que o meio mais seguro de estabelecer nossa felicidade neste mundo é baseando-a em uma relação constante de benefícios e ajuda mútua. (...) (Extraído do livro Essais sur les préjugés, Paris, 1822. César Chesneau Dumarsais, gramático e filósofo francês - 1676-1756).
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